Um ex-funcionário de uma fabricante de cigarros obteve uma vitória significativa na Justiça ao receber mais de R$ 1,2 milhão em horas extras, apesar de ter sido inicialmente contratado como vendedor externo. Essa reviravolta ocorreu quando ele conseguiu demonstrar que a empresa tinha a capacidade de monitorar e controlar sua jornada de trabalho.
A base para o desfecho favorável reside nas disposições do artigo 62 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que isentam da obrigação de pagamento de horas extras os “empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho”.
A empresa Souza Cruz se amparou em um acordo presente na convenção coletiva da categoria de vendedores externos, alegando que não deveria remunerar horas extras, já que não existia um meio efetivo de controlar a jornada desses trabalhadores.
No entanto, o funcionário conseguiu provar que, mesmo atuando externamente, a empresa mantinha a capacidade de supervisionar seus horários. Em decorrência disso, o tribunal concluiu que ele não se enquadrava como trabalhador externo e ordenou que a empresa pagasse as horas extras acumuladas durante seus quase seis anos de contrato.
A sentença foi emitida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, localizado em Curitiba (PR), e resistiu a recursos posteriores, inclusive no Tribunal Superior do Trabalho (TST).
O processo foi finalizado em junho do ano corrente, e o trabalhador já recebeu os valores devidos, conforme indicou o advogado responsável pelo caso, Denison Leandro.
No entanto, é relevante entender o que caracteriza o trabalho externo. Conforme explicou a advogada Vanessa Carvalho, sócia do escritório Miguel Neto Advogados, ocupações que se enquadram nessa categoria incluem instaladores de antenas, eletricistas, leituristas de medidores de energia, representantes de vendas que atuam em campo e motoristas profissionais.
O advogado Edson Hauagge, sócio do departamento trabalhista da Andersen Ballão, acrescentou que o trabalho externo envolve a impossibilidade da empresa controlar o horário de trabalho do empregado, seja por meio de cartão de ponto, relatórios, GPS ou qualquer outro sistema.
No caso de um funcionário ser contratado sob a premissa de trabalho externo, mas a empresa implementar meios de controle da jornada de trabalho, ela pode ser condenada a pagar horas extras, conforme explicou o especialista Hauagge.
O advogado Marcel Zangiácomo, especialista em direito processual e material do trabalho, também destacou práticas que podem descaracterizar o trabalho externo, como a solicitação de relatórios de atividades, ligações para verificar o horário de trabalho e a análise dos horários por meio de aplicativos, entre outros.
Zangiácomo enfatizou a importância de registrar adequadamente a condição de trabalho externo na carteira de trabalho e no registro do empregado, quando aplicável.
No caso do funcionário que recebeu R$ 1,2 milhão em horas extras, ele foi contratado como supervisor de vendas em dezembro de 2012. Alegou que, até 2018, quando deixou o emprego, trabalhou constantemente em jornadas estendidas, sem receber horas extras ou adicional noturno, apesar de cumprir expedientes que se estendiam até as 23h.
Conforme a CLT, empregados em atividades privadas não podem exceder oito horas diárias, e, caso trabalhem horas adicionais, essas devem ser remuneradas com um adicional de 50% sobre o salário-hora normal. A legislação também estipula que, em jornadas superiores a seis horas, deve ser concedido um intervalo mínimo de uma hora para repouso ou alimentação.
O trabalhador demonstrou que a empresa controlava sua jornada ao manter contato diário com seu gestor pela manhã, receber orientações sobre locais a visitar para vendas e iniciar e encerrar o dia na sede da empresa, de segunda a sexta-feira.
Além disso, a empresa utilizava diversos recursos, como GPS, rastreador e bloqueador em veículos e dispositivos corporativos, para acompanhar as rotas de vendas do funcionário.
Diante dessas evidências, a Justiça determinou que a empresa compensasse o período em que o trabalhador ultrapassou as oito horas diárias, bem como os adicionais noturnos e os intervalos não gozados diariamente, totalizando um montante de R$ 1.267.315,91, incluindo horas extras, imposto de renda, INSS, custas judiciais e honorários advocatícios.
A defesa da Souza Cruz argumentou que o caso precedeu o julgamento do STF sobre o assunto e mencionou precedentes do TST que reconheciam que a ausência de controle de jornada de trabalhadores externos podia ser objeto de negociação coletiva.
O advogado trabalhista Ronaldo Tolentino, que representou a Souza Cruz no Tribunal Superior do Trabalho, citou uma decisão mais recente da 5ª Turma do TST que rejeitou o pedido de horas extras de um vendedor da empresa, sustentando que ele possuía autonomia para determinar seus próprios horários.